O que há em comum entre a minha monografia sobre políticas
públicas para pessoas com mobilidade reduzida (que se se arrasta como uma
lesma, mas não está parada), a polêmica sobre o parto em casa e os obstáculos
que homens e mulheres transexuais enfrentam para terem sua identidade aceita
reconhecida? Todas tem o discurso médico como condutora de políticas públicas.
Eu sempre me interessei por política. E acompanhando o
processo eleitoral nos últimos anos, os noticiários de TV, sempre notei que a
Economia tinha um papel decisivo nas macro decisões. A Economia é o deus mais
importante da política. Então eu tinha vontade de estudar Economia não porque o
assunto de fato me interessasse tanto, mas porque queria comer o fruto da
árvore do bem e do mal, queria ter conhecimento técnico pra afirmar que dá pra
conduzir o mundo de outro jeito. Enfim, não fiz Economia, fiz Letras, e os
motivos interessam mais a minha analista do que a vocês, acreditem. Mas não deixei de me interessar por política nunca, jamais,
em tempo algum, embora político partidário às vezes me cause mais sono do que revolta,
como seria de se esperar (Maluf? Erundina? So eighties, honey!).
Daí chego a minha monografia. E me dou conta de que há
produção em ciências sociais sobre as dificuldades cotidianas das pessoas com
deficiência é muito restrita. Mas chego a isso já depois de ser apresentada a
questão da deficiência como problema social. Há uma sociedade que teima em discriminar
tudo o que não se enquadra num padrão, regido, entre outras coisas, pelas
exigências do mercado de trabalho. Mas o discurso que sempre se usou para se
olhar para as pessoas com deficiência é o médico. De que as pessoas precisam
ser curadas ou reabilitadas. Vira uma questão pessoal que restringe a inclusão
ao indivíduo. É um ponto de vista que vem sendo combatido nos últimos anos, mas
continua muito forte. Tanto que para ter acesso a algumas políticas de
inclusão, é necessário um laudo médico. Não basta o testemunho ocular da
deficiência física. É o médico quem deve atestá-la.
A questão dos direitos das pessoas transexuais é análoga em
muitas coisas. Outro dia vi que um juiz autorizou uma pessoa trans a mudar seus
documentos sem passar por nenhum processo cirúrgico, mas isso é muito raro – e
claro, implicou gastos com processo judicial que não são acessíveis a toda a
população. No geral, pessoas que se identificam com um sexo diferente do que
foi atestado no nascimento são submetidas a um pesado e desumano escrutínio
psicológico. Sua diversidade é patologizada com a desculpa de tornar possível
sua inclusão numa sociedade que não aceita a diferença. Não é possível mulher
com pênis: se tem pênis e “quer ser” mulher é doente, e vai ser estigmatizado
como doente por anos até poder ter acesso a uma cirurgia que “corrija” o que
está errado. Daí podemos pensar no caso de mudar os documentos e poupar de uma
série de constrangimentos. Mas se não se enquadrar no que o discurso padrão
acredita ser uma mulher alfa, você é só um homem meio estranho mesmo. Não
insista. (¹)
Chegamos ao parto. O que alguém pode dizer que é diferente,
que é claramente uma questão de saúde. E não nego que seja também, mas não é só isso. E o post é sobre essa
hegemonia do discurso médico. Que o parto é anterior a medicina, acho que é
fato histórico incontestável. É claro que o número de óbitos era alto, ninguém
vai negar. Este não é um post pra falar mal da medicina, muito menos de cesarianas,
porque são conquistas importantíssimas para humanidade. A questão é que
transformou-se o parto em um procedimento obrigatoriamente médico. A presença
de um médico deixa de ser um direito e passa a ser mandatória para um parto com
segurança.
Misturei um monte de coisas, porque o que eu tenho pensado é
sobre como os médicos passaram a ser sacerdotes dos comportamentos, tal qual os
economistas são para as grandes decisões políticas. Porque o nosso olhar sobre
o outro, esteja se locomovendo em uma cadeira de rodas, esteja adotando uma identidade
diferente da designada em seus documentos, é um construto social, mas chamamos
os médicos para nos socorrerem sempre que este outro sai do que consideramos
“normal”. Poderíamos chamar um poeta, um filósofo, poderíamos achar que urgente
é construir empatia. Mas achamos mais urgente rotular, enquadrar, fazer caber no nosso modelo de mundo, de normalidade, de civilização.
(¹) Mencionei o pessoal trans sem me aprofundar demais, porque não tenho condições. Espero não ter sido leviana e que tenha ficado claro que as aspas aí significam não o que eu penso, mas um senso comum. Estou pronta a me desculpar caso tenha ofendido alguém.
Iara, só pra dizer que seu texto é PHODA, gata
ResponderExcluirAmei demais! <3 <3
Vanessa, sua lindona. Obrigada. Mesmo.
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